quarta-feira, 24 de abril de 2013

A morte da última Beguína




Passou despercebido, na semana passada, um triste acontecimento, do ponto de vista quer da História cultural da Europa, quer da vida da Igreja católica: a morte da ultima beguina, irmã Marcella Pattyn, com a idade de 92 anos, em Coutrai, na Bélgica.
O movimento das Beguinas começou no século XII, no Norte da Europa, na Flandres (actual Bélgica) e espalhou-se em seguida pela Alemanha e pela França. Eram mulheres celibatárias ou viúvas que, sem serem freiras propriamente ditas (não pronunciavam votos monásticos nem viviam em clausura), escolhiam viver perto de hospitais ou asilos, ajudando os pobres e os doentes. Viviam do seu trabalho (eram tecelãs, sobretudo), rezavam em comum, e muitas desenvolveram uma frutuosa actividade intelectual, na Poesia e na Espiritualidade (contaram entre elas, nomes como Hadevich de Anvers e Matilde de Magdeburgo, duas das maiores místicas medievais). Viviam em pequenas casas agrupadas junto de uma capela ou igreja; o conjunto dessas habitações chamava-se um “béguinage” (chegaram  a existir 80 “bairros” deste género na Bélgica).


O movimento teve a dada altura problemas com a hierarquia da Igreja, devido a infiltrações de ideia heréticas, dos chamados Irmãos do Livre-Espirito (que defendiam um radical anarquismo e panteísmo, com rejeição dos sacramentos e do culto eclesial); mas com o tempo, vários Papas, sobretudo João XXI no século  XIV, trataram de  as integrar na vida da Igreja, dando-lhes como orientadores sacerdotes das Ordens mendicantes (Franciscanos e Dominicanos). Porem, todas as tentativas de as converter quer numa espécie de “ordem terceira”, ou em típicas monjas de clausura fracassaram. Permaneceram ao longo dos seculos como leigas consagradas, vivendo no mundo mas com um estilo próprio, sem madres superioras e regras estritas. Foi esta «independência» (alem das referidas “infiltrações” de ideias heréticas) que a inicio provocou a desconfiança da hierarquia da Igreja, pois no mundo medieval só havia dois papeis aceitáveis para a mulher: ou esposa (no mundo) ou freira (na clausura dos mosteiros). Assim pode-se dizer que as Beguinas foram «revolucionárias» para a época (à sua maneira, claro está...).
Quanto à origem do termo “Béguine” (a palavra francesa é mais conhecida), há varias teses em confronto: uns defendem que deriva de Santa Begge (irmã de Santa Gertrudes, século VII) ,enquanto outros afirmam que deriva do baixo-alemão «beggen»  - que significa mendigar (ao inicio, muitas viviam de esmolas).

                                                    A «Béguinage» de Bruge, Bélgica.
 
As Beguinas duraram mais de oito séculos (a primeira referencia é uma comunidade deste género é de finais do século XII), atravessando as mais variadas vicissitudes da História da Europa e da Igreja católica. Com a morte da irmã Marcella, perdemos nós, Europeus do seculo XXI, crentes ou laicos, um pouco de nós mesmos.

sábado, 20 de abril de 2013

Bento XVI, eleito há oito anos (2005-2013)


 
Fez ontem, dia 19 de Abril, oito anos que o Cardeal Joseph Ratzinger foi eleito Papa, tomando o nome de Bento XVI.

Confesso que, a inicio, foi daqueles que tinha uma certa opinião negativa a seu respeito, um pouco por influencia da imagem que a Comunicação social  foi criando à sua volta, durante o pontificado do seu antecessor João Paulo II: a do “Panzer -Cardeal”, a do “Grande Inquisidor”, o ortodoxo da linha dura e perseguidor do teólogos dissidentes, uma espécie de nostálgico do Pré-Vaticano II -  ele que anos 60, fez parte da plêiade de teólogos ”liberais” do mesmo Concilio como assessor (do cardeal Friggs, arcebispo de Colónia) mas que se teria “deslocado para o conservadorismo”, assutado com a crise pós-conciliar e com as revoltas do Maio de 1968.

Mas tenho que admitir que mudei de opinião a seu respeito, ao longo do seu (afinal) breve pontificado de oito anos. Bento XVI foi um Papa de enorme estatura intelectual, tal como foi durante a sua vida como teólogo, padre, arcebispo e cardeal. As suas encíclicas (sobretudo “Deus Caritas Est”) e os seus livros (quer os que escreveu como teólogo – a fabulosa “Introdução ao Cristianismo”- quer como Papa -  a trilogia “Jesus de Nazaré”) ficarão na História da Igreja e mesmo da Cultura. Também a compilação das suas “catequeses” das audiências de quarta-feira são notabilíssimas, pois conseguiu falar de temas teológicos e de santos em linguagem simples e acessível ao comum dos fieis.

Recebeu homenagens de intelectuais laicos, como o filósofo alemão Jurgen Habermas e o escritor peruano Mário Vargas Llosa. Relançou as pontes entre a Fé católica e o mundo da cultura, através da criação do “Pátio dos gentios”; prosseguiu o estilo “missionário” de João Paulo II, com as sua viagens ao longo do Mundo; procurou restaurar a dignidade da Liturgia católica, rectificando alguns aspectos e abusos; reabilitou a Missa Tridentina cheia de beleza e hieratismo; tentou (em vão) a reintegração dos tradicionalistas da Fraternidade de S. Pio X na Igreja. E perante o revelar dos escândalos de pedofilia e pederastia dalguns membros do clero católico, pediu publicamente perdão às vítimas, encontrou-se com elas nas suas viagens, e promulgou normas severas para que tais abusos não se voltassem a repetir, manchando quer a dignidade das crianças e adolescentes, que o rosto da Igreja, em que se deve sempre reflectir a Beleza de espiritual de Cristo.

Mas este Papa idoso, tímido, inteligentíssimo, de voz suave e sem grande carisma junto das multidões (ao contrario do seu antecessor, «o Papa mais popular de sempre», espécie de estrela «pop») teve que defrontar o longo dos seus oito anos de pontificado, uma oposição surda, tenaz, quer vindo de sectores laicistas radicais das nossas Sociedades “pós-cristãs”, quer mesmo de sectores do interior da sua própria Igreja - aqueles que nunca lhe perdoaram a suposta viragem para posições conservadoras (“foram eles que mudaram, não eu”, disse uma vez) e condenação dos desvios dalguns teólogos.

Foi acusado tenazmente de encobridor de padres pedófilos, quando foi dos primeiros  a denunciar esse mal  e a combatê-lo; as suas afirmações sobre a forma mais eficaz de combater a epidemia da sida foram deturpadas (“uma sexualidade humanizada”: fidelidade conjugal, abstinência pré-matrimonial, etc.), provocando a ira da opinião publica contra ele e contra a Igreja ao ponto de acusar o Papa pelo alastramento da sida em África; o levantamento das excomunhões aos Bispos “integristas”, seguidores do cisma do Arcebispo Lefebvre levou à revelação de que um destes seria  “negacionista” do Holocausto e que o Papa se prepararia para readmitir na Igreja elementos “fascistas e anti-semitas” - o que provocou mais uma avalanche de “protestos”, tendo o Papa acabado por escrever uma carta aos Bispos do mundo inteiro, acusando-os quase de o terem abandonado nesta situação e de não ter sido convenientemente informado.  E todos recordarão ainda o famoso episodio de um seu discurso em 2006, a quando da sua visita à Alemanha, em que uma citação de um Imperador bizantino do século XIV sobre o Islão e seu profeta Maomé levou, em alguns países muçulmanos, a uma fúria anti-Papa, em que alguns cristãos forma inclusive mortos.

Mas penso que o mais doloroso para o ex-Pontífice terá sido o famoso caso da fuga de documentos pessoais, feita pelo seu próprio mordomo (a “Vatileaks”), bem como a relatório que depois encomendou a três cardeais da sua inteira confiança e que nunca foi tornado público sobre esse escândalo e outros (as intrigas da Cúria romana, Banco do Vaticano, comportamento sexual dalguns membros do clero, etc.) . Bento XVI ter-se-á provavelmente sentido traído pelos seus mais directos colaboradores (não sabemos até que ponto) e, sentindo-se velho, cansado e sem forças, preferiu abdicar da chefia da Igreja (algo inédito desde o século XV), deixando ao seu sucessor a tarefa (gigantesca) de “pôr a casa em ordem”.

Como católico, rezo pelo Papa-emérito, Bento XVI  e pelo presente Papa, Francisco I; mas não posso, pessoalmente, de sentir um sentimento de tristeza pelo facto do anterior Pontífice (“um dos Papas mais cultos e inteligentes que a Igreja teve em séculos”, como disse o escritor agnóstico Vargas Llosa) ter recebido tanta incompreensão, hostilidade, ódio, e rejeição durante o seu pontificado, que foi, um martírio silencioso e incruento. Um pouco como no dístico que lhe atribuído na (provavelmente apócrifa) “Profecia dos Papas”, atribuída ao bispo irlandês  S. Malaquias: “Glória da Oliveira”. Ora foi no Jardim das Oliveiras, que Jesus iniciou a sua paixão, depois da Última Ceia. O pontificado de Bento XVI foi um silencioso e incruento martírio. Hoje, no retiro do mosteiro “Mater Ecclesiae”, à semelhança do seu longínquo antecessor S. Celestino V - o Papa do século XIII que também abdicou – Jospeh Ratzinger, como já alguém disse,  “depois de ter falado de Deus a nós, fala de nós a Deus”.

Que Deus dê a Sua bênção,  a ele e a nós.

 


 

domingo, 14 de abril de 2013

José Rentes de Carvalho, um mestre do Romance português actual


Acaba de ser publicado em Portugal mais um romance do grande escritor José Rentes de Carvalho (n. 1930), português radicado na Holanda desde 1956 e que só nos últimos anos tem sido descoberto em Portugal seu país natal, graças à Editora Quetzal. O título do novo romance chama-se “Mentiras  e Diamantes”, tem algo de romance policial,  e é passado no Algarve.

Rentes de Carvalho insere-se na tradição do Realismo literário, que tem cultores na nossa Ficção, começando em Eça de Queirós e Júlio Diniz (no século XIX) e que se prolongou até aos nossos tempos, tendo no século XX incluído nomes como Ferreira de Castro, Rodrigues Migueis, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga e os neo-realistas de 1940-1960, como Fernando Namora, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Soeiro Pereira Gomes e Manuel da Fonseca (embora estes cultivassem um realismo, a meu ver, com fortes pressupostos politico-ideológicos, que, em certos casos, tornou demasiado datadas as suas obras).

Nos livros de Rentes de Carvalho (tais como “Ernestina”, “La Coca”, “A amante holandesa”, “O rebate”), encontramos um prazer de uma história bem contada, com ironia e elegância de linguagem, que nos fazem pensar num Eça de Queirós dos nossos tempos que se tivesse dedicado a retratar figuras e casos do Portugal profundo, rural, do interior. Porque Rentes, que vive há décadas na “avançada” e cosmopolita Holanda e foi por lá professor de uma universidade, escolhe, paradoxalmente, para cenário dos seus romances, as regiões rurais do Norte de Portugal, onde mostra o confronto tradição/modernidade e a sobrevivência de figuras e tipos humanos que pensaríamos desaparecidos com a entrada do nosso país na então CEE- Comunidade Económica Europeia (1986). Estou pois curioso em ler este romance,  que, ao que diz a publicidade, é passado no sul de Portugal (o Algarve do turismo), o que é uma novidade  na obra do autor. Mas também espero (re)encontrar as personagens castiças, “telúricas”, dos romances anteriores!

Rentes de Carvalho é, de certa forma, um Eça que escreve sobre o mundo de Camilo. Leiam-no !




quinta-feira, 4 de abril de 2013

Um acontecimento editorial marcante: edição da obra completa do Padre António Vieira




Começou a ser publicada, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a edição critica da obra completa do Padre António Vieira (1608-1697), figura cimeira da nossa Cultura: sacerdote, missionário, pregador, escritor, politico, filósofo da História, defensor dos Índios e dos cristãos-novos.

Um acontecimento da maior relevância, neste ano de 2013, em que, ao lado da crise social e económica, assistimos a uma crise da cultura, não só patente com o encerramento de editoras e livrarias, como através da proliferação desenfreada de uma literatura de baixa qualidade, os famosos “best-sellers” que enxameiam os escaparates das FNAC's e dos supermercados.